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Invicta. Música. Filmes.

CONVERSA COM ÓSCAR RODRIGUES, RESPONSÁVEL PELA DIGITÓPIA

“A música é uma presença constante no cinema, mesmo quando não nos apercebemos dela”

 

A presente edição do Invicta.Música.Filmes levou-nos à conversa com Óscar Rodrigues, um dos compositores e intérpretes das bandas sonoras que, no espectáculo Sombras Animadas (11.02), acompanham a projecção das fitas da realizadora alemã Lotte Reiniger, relíquias inestimáveis do cinema de animação, algumas delas já centenárias.

 

Nas últimas décadas tem-se tornado comum, sobretudo em festivais de cinema, a projecção de filmes mudos acompanhada pela interpretação ao vivo de novas bandas sonoras criadas especificamente para eles. Qual é esse estímulo e que desafios coloca a quem compõe?

A primeira razão da preferência por filmes mudos é óbvia: não têm banda sonora. Só isso já nos dá margem para perceber como o som pode mudar o entendimento que temos do filme. A segunda razão prende-se com os direitos – à partida estamos a falar de filmes que já perderam os seus direitos, o que nos confere uma liberdade criativa maior. Depois, o filme mudo pede-nos um olhar contemporâneo, à luz do qual imaginamos como podemos criar música para ele, há essa dimensão transformadora. Mas além do desafio artístico, que envolve as características e experiências de cada músico e a procura de as conjugar em prol de um desígnio comum, é preciso não esquecer o desafio técnico: há um filme a correr e a imagem e o som têm de estar sincronizados.

Hoje, no entanto, existem ferramentas que facilitam o processo.

Sim, eu nem quero imaginar como é que os músicos faziam aquelas coisas supercomplexas que vemos, por exemplo, nos filmes do Tom & Jerry, onde o maestro estava a dirigir e a ver o filme ao mesmo tempo e sabia que quando o gato batesse com a cabeça era preciso dar entrada ao tímpano para ele ter o ataque pretendido. Tudo feito sob uma pressão gigante e certamente com vários takes. Temos de nos adaptar à velocidade do filme. Mas são desafios que às vezes até nos tornam mais criativos, porque as restrições técnicas também são boas para percebermos como podemos dar a volta e criar soluções interessantes.

Em que medida as possibilidades tecnológicas têm mudado esta tarefa?

É óbvio que a tecnologia digital facilita imenso, porque podemos ter o vídeo e o áudio digitais e, quanto mais não seja, uma faixa de referência que só nós, músicos, ouvimos e nos diz, por exemplo, a pulsação exacta para garantirmos que aquilo bate tudo certo, que não vamos acabar um bocadinho antes ou depois. Também podemos pôr no próprio filme uma deixa para sabermos que, quando ouvimos um determinado som, chegou a altura de darmos a última volta. Mas eu lembro-me de que ainda há poucos anos, precisamente no Invicta.Música.Filmes, nós fizemos um projecto com o Walter Ruttmann e o Hans Richter cujo filme ainda não foi exibido em película. Logo no primeiro ensaio aconteceu uma coisa estranhíssima: o projector estava configurado para um frame rate diferente, ou seja, tínhamos o filme a passar mais rapidamente do que era suposto, então ficámos todos em pânico porque as coisas não batiam. Era uma questão de alguém ir lá rodar o botão para ficar tudo resolvido. Isto ainda acontece com todas as tecnologias analógicas.

O filme chega-vos às mãos já feito, logo há, em princípio, uma submissão da música às imagens, mas é mesmo necessário que assim seja, no contexto de criação de uma banda sonora?

Podemos mudar completamente o entendimento do filme mudando o tipo de som. E não faltam exemplos. Um realizador de quem eu gosto particularmente e que faz isso muito bem é o Stanley Kubrick. Entre outras cenas célebres, há aquela do 2001 – Odisseia no Espaço em que se ouve a valsa do Strauss enquanto a nave flutua. À partida, uma valsa vienense não teria nada a ver com as imagens espaciais e o futurismo do filme, mas a verdade é que há ali um elemento de leveza que une tudo, e hoje já não consigo ouvir aquela valsa sem me lembrar das imagens. É uma forma de acrescentar valor artístico. Podemos sublinhar o tom do filme, fazer uma espécie de contraponto ou até desvirtuá-lo.

Há uma certa autossuficiência nas imagens, que podem induzir por elas estados emocionais nos espectadores. Muitas vezes a música é usada como um apoio da emoção pretendida. Há sempre o perigo de conduzir excessivamente quem vê?

Sim, e eu até iria mais longe: diria que a música muitas vezes serve para manipular o espectador, por exemplo levando-o num sentido para o surpreender logo a seguir. A partir do momento em que foi possível fazer bandas sonoras – a primeira fita com som é de 1926, mais ou menos da altura destes filmes da Lotte Reiniger – a música tornou-se uma presença constante no cinema. Às vezes nem nos apercebemos dela, mas está lá na mesma, a manipular-nos as emoções e as expectativas.

Falando do Invicta.Música.Filmes, este ano há uma tónica no cinema de terror, provavelmente um dos géneros em que se torna mais crucial o uso da música. Será porque a música ajuda o cinema a penetrar mais fundo nas zonas insondáveis do nosso cérebro?

Nós costumamos dizer que a música, por ser abstracta, tem uma ligação mais directa às emoções. Aliás, a música para cinema passou a ser quase uma categoria artística, muita dela até se emancipou do filme e entrou sozinha nas salas de concerto. Isso também veio da criação de um estilo, um certo tipo de música que interpretamos como sendo cinematográfica ou para cinema, muito colorística, com um lado emocional imediato e muito presente.

Porque é que escolheram os filmes da Lotte Reiniger para este projecto?

Porque têm uma simplicidade quase avassaladora. São filmes dos primórdios da animação, um deles, As Aventuras do Principe Achmed, é mesmo a primeira longa-metragem do cinema animado – muito anterior ao Walt Disney. Há, portanto, um lado quase naïf na forma como a Lotte Reiniger fazia as coisas, uma simplicidade que não compromete a estética, nem a beleza. Ela consegue ser muito intrincada nos resultados que tem, tanto do ponto de vista das narrativas como das texturas, da diversidade de formas e, mais à frente, de cores, utilizando processos muito simples que habitam o nosso imaginário, coisas como cortar papel e mexer formas em cima de uma mesa de luz, ou como sobrepor camadas de papel, do mais opaco ao mais translúcido, para criar efeitos de profundidade. Essa técnica, ainda hoje aplicada no stop motion, que consiste em tirar um fotograma, mexer ligeiramente as figuras, tirar outro, voltar a mexer as figuras, e assim sucessivamente, é muito simples na sua essência mas tem um valor artístico enorme. Há anos que eu gostava de fazer um concerto com filmes da Lotte Reiniger precisamente pela consciência desse valor artístico muito elevado e da simplicidade única no tratamento do material – só possível por ela ter sido uma pioneira, alguém sem história para trás que teve de arranjar a sua própria maneira de fazer as coisas e com isso influenciou tudo o que veio depois.

O que dizes reforça a ideia de que há uma coerência estilística no trabalho de Lotte Reiniger. Isso condicionou a vossa liberdade criativa ou as bandas sonoras para cada filme foram abordadas autonomamente?

Eu, o Ricardo Vieira e o Filipe Fernandes, que estamos juntos em palco, temos a nossa linguagem, por isso é natural que haja uma coerência na criação da música, mas a verdade é que os filmes em si são muito diferentes uns dos outros. Por exemplo, a fita que abre o concerto conta a história da Cinderela, mas depois vem um anúncio, porque na altura era comum haver anúncios de dois, três minutos, exibidos antes dos filmes, e logo a seguir uma curta muito fora, A Mala Voadora, encadeada num fragmento de O Príncipe Sapo que, por sua vez, antecede uma viagem surreal a África do Dr. Dolittle… Ou seja, havendo a tal coerência estética do lado das imagens, por ser a mesma realizadora, com as mesmas técnicas e um cunho muito claro e particular, também a há do lado da música, por sermos nós a tocar, mas as temáticas são tão diferentes que cada filme exige abordagens distintas. Nós tentámos sempre, por exemplo, variar ao nível da instrumentação e tirar partido dos recursos da electrónica, que nos permitem fazer tudo, para dar aos filmes essa diversidade que eles também exigem. Portanto, foi um misto das duas coisas.