“Todos os dias devíamos ouvir um pouco de música,
ler uma boa poesia, ver um quadro bonito e, se possível,
dizer algumas palavras sensatas.”
Agenda 2023
descarregar agenda 2023assinaturas 2023J. W. Goethe
Bem-vindos a 2023. Bem-vindos ao Ano da Alemanha na Casa da Música!
No início desta nova temporada, parece-nos oportuno recordar que a Casa da Música foi pensada para ser um centro musical de produção própria de excelência, a par duma programação criteriosa de vários géneros musicais e diversidade dentro dos géneros musicais.
O modelo de gestão artística integrada de um Serviço Educativo e cinco Agrupamentos Musicais com características adequadas à interpretação do repertório de um arco temporal sempre em expansão, bem como o apoio a projectos musicais independentes de reconhecido mérito, confere à Casa da Música um potencial único e distintivo duma programação articulada, comunicante e de realização artística dos talentos produzidos no país.
Do exercício permanente de aprofundamento e maturação, no seio da equipa de maestros titulares e programadores, de conceitos e estratégia artística, tem resultado a convicção de que continua ainda avisado, para o usufruto do público e coerência dentro da diversidade, visitar, com critério, uma segunda vez países que já tinham sido tema de temporadas passadas, aprofundando perspectivas que terão ficado por tratar. Nesse sentido, revisitámos a Áustria, a França e a Itália, enquanto grandes referências da música, permitindo o aprofundamento de diferentes abordagens, entre as quais a revelação de novos artistas, a pujante criação contemporânea e a abertura de novas redes e cumplicidades artísticas.
Por uma questão de coerência programática, impunha-se revisitar umas das potências maiores da música, ao caso a Alemanha, que continua a oferecer-nos um património musical inesgotável, desde o Renascimento até aos nossos dias, proporcionando, como poucos, um maná de obras-primas, do cânone ou de criação recente, para todos os Agrupamentos Residentes, novas propostas musicais que tendem a esbater as tradicionais e mútuas exclusões entre música “erudita” e “não erudita”, e matéria fértil para o Serviço Educativo.
Oito anos volvidos desde o primeiro Ano da Alemanha, muito se passou, na música, na Europa, no Mundo, nas prioridades da sociedade e dos indivíduos. As perplexidades perante a fragilidade do adquirido convidam pouco à racionalidade e ao humanismo; às indignações justas contrapõem-se trincheiras imunes à verdade; os novos desafios conduzem muitos à frustração e ao desespero.
É no mundo e no tempo em que vivemos, e não numa qualquer torre de marfim, que a Casa da Música se propõe cumprir a sua missão cultural e apresentar-se a escrutínio, com um programa e um compromisso entendíveis e atendíveis. Verificaremos – nós, o nosso público, os artistas convidados e parceiros nacionais e internacionais – até que ponto a Casa da Música se encontra apetrechada para responder às expectativas de cidadãos mais informados e cada vez mais exigentes, bem como das aptidões técnico-artísticas requeridas por novas obras, nas suas componentes musicais, tecnológicas, educativas e de capacidade de produção.
O convívio, ao longo destes anos, com alguns dos maiores compositores da actualidade, nomeadamente os alemães, deixou sementes em terreno cada vez mais fértil e contribuiu definitivamente para a proximidade entre público e criadores, para a capacitação de jovens músicos e compositores nacionais e para a relevância da Casa da Música nos planos nacional e internacional. No que à Alemanha diz respeito, o peso do testemunho de personalidades como Helmut Lachenmann, Heiner Goebbels, Wolfgang Rihm ou Jörg Widmann abriu importantes caminhos num terreno íngreme e com forte competição. O seu regresso regular só veio evidenciar a sua confiança numa Casa focada e preparada para servir os artistas, e assim melhor servir o público.
A manifesta qualificação e evolução do nível artístico da Orquestra Sinfónica, Remix Ensemble, Orquestra Barroca, Coro e Coro Infantil, o relançamento da capacidade e alargamento do espectro da intervenção do Serviço Educativo na sociedade, um novo élan no nosso núcleo de investigação e produção tecnológica digital, a Digitópia, dão-nos todas as garantias de estarmos à altura de novos desafios.
A Casa da Música tem-se tornado um palco cada vez mais apelativo para os promotores privados apresentarem artistas de renome internacional, muito na medida em que a programação própria se afirmou pela sua credibilidade e elevado grau de exigência nos mais variados géneros musicais. E porque criou um público. Sinal dos tempos, a distinção entre a operação económica do entretenimento e a actividade cultural como missão de serviço público problematizou-se – primeiro nos géneros do pop-rock e afins, e agora também num certo jazz easy listening e em modelos empobrecidos da chamada “música clássica light”. Mais complexas dinâmicas concorrenciais, com a entrada em cena e proliferação de novos players, tantas vezes associados a grandes marcas de consumo, obrigam as grandes instituições co-financiadas pelo Estado a repensarem o seu posicionamento. A seu tempo estaremos a anunciar uma nova estratégia e o cartaz para a programação própria do jazz, pop-rock ou world music, numa articulação que se pretende cada vez mais estreita com os promotores privados.
Neste regresso ao Tema da Alemanha em 2023, a escolha para a principal residência artística recaiu com naturalidade no já consagrado Enno Poppe. Um compositor entretanto alcandorado ao auge da sua produção e reconhecimento internacional, também requisitado pelas suas qualidades enquanto maestro especializado, que há já vários anos mantém uma relação de empatia artística com a Casa da Música. Deste brilhante artista alemão iremos partilhar com o público algumas das suas obras mais relevantes ou mais recentes, que a Orquestra Sinfónica e o Remix Ensemble darão a ouvir em primeira audição nacional.
Tendo em atenção os compositores que estiveram mais em foco em 2015 – e sendo que muitos destes se mantêm inevitavelmente no cardápio – iremos desta feita tentar fazer alguma luz sobre alguns “esquecidos” e injustamente menos frequentados. Para a sua interpretação convocámos um grupo notável de artistas, maestros e solistas reconhecidos pelas suas qualidades e especialização, muitos dos quais fazem parte do percurso de desenvolvimento e credibilização do projecto artístico da Casa da Música, a começar pelos Maestros Titulados da Orquestra Sinfónica, Stefan Blunier e Christian Zacharias, do Remix Ensemble, Peter Rundel, da Orquestra Barroca, Laurence Cummings e do Coro Infantil, Raquel Couto.
Para além das sempre renovadas Narrativas identitárias da grelha da programação, do Ciclo de Piano, do Ciclo de Jazz ou do Ciclo de Jovens Talentos nacionais, em 2023 propõem-se novas constelações programáticas e assinaturas, novas temáticas, novos olhares. A Integral das Sinfonias de Schumann será um forte contributo para a consistência programática do Ano da Alemanha. Enquanto o Ciclo Grandes Concertos Virtuosos reunirá uma série de concertos para vários instrumentos solistas (com destaque para o piano, violino e violoncelo) que, do Barroco aos nossos dias, ilustrará em que medida a figura do solista virtuoso ganhou um estatuto quase divino.
Logo em Janeiro, a marcar a Abertura Oficial do Ano da Alemanha, Made in Germany dá o mote para o eixo principal da temporada. Neste ciclo inaugural, a Orquestra Sinfónica terá três momentos para colocar a sua versatilidade ao serviço de Wagner, Richard Strauss, Bernd Alois Zimmermann (numa obra-farol de meados do século XX) e de Heiner Goebbels, com a estreia nacional de A House of Call, a sua última grande obra cénico-sinfónica, aliás co-encomendada pela Casa da Música. A música barroca estará representada por Georg Muffat, G. F. Händel e J. S. Bach, contando com o panache da Orquestra Barroca e a sabedoria de Andreas Staier. Ao Remix Ensemble competirá apresentar Enno Poppe, dirigindo ele próprio uma das suas obras de grande fôlego e intensidade expressiva. Brahms terá merecido espaço para a sua obra coral, uma faceta menos conhecida pelo público, a que o Coro Casa da Música se entregará com paixão. Pela mão do Serviço Educativo teremos a estreia dum novo espectáculo de teatro musical para as famílias inspirado na figura de Einstein.
O ciclo Invicta.Música.Filmes tem lugar reservado em Fevereiro e apresenta dois filmes de culto, servidos por novas partituras interpretadas ao vivo pela Orquestra Sinfónica e pelo Remix Ensemble. Destaque para as estreias em Portugal da música que Sanchez-Verdú compôs para o filme de Jean Epstein, La chute de la maison de Usher (baseado no conto homónimo de Edgar Allan Poe), e de Frankenstein, de James Whale, com partitura original de Michael Shapiro. Numa nova produção do Serviço Educativo teremos a oportunidade de assistir a uma série de filmes históricos de animação de Lotte Reiniger, musicados por um colectivo de músicos e formadores.
Em Março, Música e Mito, não sendo um ciclo regular, regressa em segunda edição ao alinhamento da programação. Esta Narrativa aborda uma temática intemporal que produziu notáveis obras-primas da música erudita ocidental, desde a mitologia greco-latina até aos grandes arquétipos da humanidade. Em destaque estarão Elektra de Richard Strauss – uma das óperas fundamentais do início de Séc.XX – e Castor et Pollux, de Jean-Philippe Rameau. O ciclo termina com uma versão de Christian Zacharias de As Criaturas de Prometeu, o único bailado escrito por Beethoven. O titã, que, desobedecendo aos Deuses, se atreveu a dar o fogo à Humanidade, não poderia ser mais talhado para a genial pluma que musicou “Alle Menschen werden Brüder”.
Os dois Concertos de Páscoa ilustram exemplos musicais de devoção profunda ou êxtase humano perante o mistério da morte. O belíssimo moteto Exsultate, jubilate de Mozart figura no primeiro concerto, evocando “o supremo sacrifício feito por Ele”. Já em Parsifal, o último drama musical do compositor, Wagner vai buscar inspiração na Lenda do Santo Graal. Desta “acção cénica sagrada” de Wagner, ouviremos excertos magistrais e bem representativos do clima de profunda imersão mística – e sensual – em que a “ópera” decorre, como o “Encantamento de Sexta-feira Santa”. Uma noite em que a Orquestra Sinfónica e o Maestro Stefan Blunier nos levarão aos recantos mais íntimos das nossas almas. Nos antípodas da hipersaturação espiritual wagneriana, as pungentes Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz de Haydn estarão nas estantes da Orquestra Barroca.
Abril é o mês do festival Música & Revolução. Em Ano da Alemanha, revolução musical rima com “Escola” de Darmstadt, onde se destacou a figura fulgurante, radical e visionária de Karlheinz Stockhausen. A sua aura e raio de influência tiveram considerável impacto, muito para lá dos círculos da música contemporânea. Exemplo maior foi a sua comprovada relação com Miles Davis. Obras como Hymmen (no programa deste Stockhausen and Friends) tiveram influência definitiva na forma com Miles passou a trabalhar os sons processados pela electrónica.
Em Música & Revolução, os dois programas cruzados da Orquestra Sinfónica e do Remix Ensemble apresentam uma panorâmica (necessariamente sintética) da geração emergente no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Stockhausen, Maderna e Boulez lideraram a transformação da nossa forma de ver e ouvir a música, através de um pensamento radical de recusa do romantismo e da “nostalgia do passado”, da exploração do espaço como novo parâmetro musical, da nova lutherie electrónica e da sua interacção com os instrumentos tradicionais.
Uma época fascinante na história da música. Um intenso fim-de-semana a não perder.
Rito da Primavera ressurge em Maio, no tempo da natureza que renasce e da pujança da juventude. Mantém-se a aposta na promoção jovens músicos emergentes nos vários géneros musicais. Destaque para a final do Prémio Novos Talentos e para os seis recitais pelos artistas seleccionados para esta edição das ECHO Rising Stars.
Entre o Solstício de Verão e meados de Setembro, Verão da Casa renova o espírito festivo que sempre o caracterizou, tendo como pontos altos os Grandes Concertos Metropolitanos, em que a Orquestra Sinfónica, o Coro Infantil e outros agrupamentos realizam concertos em ambiente urbano ao ar livre, atraindo largos milhares de pessoas que se iniciam em novas experiências musicais. O palco da Esplanada abre-se para oferecer à cidade um número significativo de concertos dos mais variados géneros da música e uma das expressões mais populares da música portuguesa, o fado, pontua os fins de tarde de Agosto.
Os temas da actualidade têm fornecido temas para a narrativa programática de Setembro. Vista do Espaço a Terra era Azul confronta as nossas consciências com a responsabilidade colectiva perante a Natureza. A Orquestra Sinfónica convida-nos para o debate propondo obras de compositores como Tchaikovski, Frank Bridge e Dvořák, que evocam as paisagens imensas da Terra em perigo. Com o Remix Ensemble, o programa passa por Darius Milhaud e a sua jazzística Criação do Mundo. A poluição e as extinções de espécies movem a australiana Liza Lim, cuja produção musical mais recente nos coloca ao espelho perante as transformações nos ecossistemas. O segundo concerto da Orquestra Sinfónica exemplifica os contrastes próprios das forças naturais. Entre a exuberância de Earth Dances, em que Birtwistle evoca as massivas forças telúricas que formaram o planeta, e a causa da preservação das baleias, numa peça de Alan Hovhaness, interpõe-se a bela sinfonia de Haydn que nos remete para o elemento fogo. Já a Orquestra Barroca apresenta suites barrocas ligadas à Natureza. O bailado Les Éléments, de Jean-Féry Rebel, e Water Music, de Telemann, encerram assim o festival. O poder expressivo da música para nos recordar que só temos este berlinde azul!
O Outono em Jazz, sempre atento a novas propostas de um género musical com cada vez mais seguidores e uma activa cena nacional, aborda territórios cada vez mais vastos, e marca a agenda de Outubro, complementando a programação ao longo do ano.
Como o próprio título indica, À Volta do Barroco é uma narrativa temporalmente abrangente, com licença para uma viagem que, começando na polifonia renascentista, se estende até aos exemplos da influência profícua do Barroco na actualidade. Sendo o “concerto” uma invenção do Barroco, o Ciclo Grandes Concertos Virtuosos terá aqui um ponto alto, em que os repertórios seiscentista e setecentista se cruzam com o contemporâneo, iluminando-se mutuamente. Para os amantes de música mais trepidante, os famosíssimos Carmina Burana, de Carl Orff, são devidamente enquadrados por grandes obras sinfónicas do nosso tempo, que evocam a música e a poesia medievais. Em Novembro cá vos esperamos para um dos festivais da temporada que melhor exemplificam a fecunda diversidade entre os géneros musicais.
A época natalícia é hoje uma celebração universal, que vai vendo acentuarem-se motivações puramente materiais. Pela música continuamos a poder invocar o seu carácter espiritual, de harmonia e de paz. Música para o Natal continua a desvendar um repertório infindável sobre a temática do Nascimento de Cristo, da Sua Glorificação ou simplesmente recordando o espírito da época. A Orquestra Sinfónica vai deliciar as famílias com uma versão narrada de O Quebra Nozes de Tchaikovski. A Orquestra Barroca, o Coro e o Coro Infantil interpretam Gloria de Vivaldi e o exaltante Magnificat de J. S. Bach, num concerto sempre esperado para um desfecho feliz de uma temporada repleta da grande música de todos os tempos.
No final, estaremos, cada um a seu modo, muito mais bem preparados para lidar com o génio epigramático de Oscar Wilde: “Esta música é em alemão, vocês não a vão compreender.”
António Jorge Pacheco