fbpx Skip to main content
Música e Revolução

Porque precisam os músicos de revoluções?

Uma revolução é uma mudança repentina, não raras vezes violenta, que se faz contra um determinado status quo. Implica, por isso, uma certa noção de libertação, de evolução e de progresso, pelo menos sob o ponto de vista dos seus instigadores, que resistirão, por isso, a qualquer sinal de retrocesso. Será também disto que falamos quando nos referimos às revoluções musicais?

É certamente difícil falar de progresso na música quando a contemporânea noção de património valoriza precisamente a justaposição da música de várias épocas, tanto na formação dos músicos como na fruição dos melómanos. E apesar das suas célebres diatribes de juventude, Stockhausen, Maderna e Boulez não pretendiam substituir nem melhorar a música de Bach, Palestrina ou Debussy. Também a reinterpretação contemporânea de música de compositores de épocas passadas — como o são, de resto, os próprios Stockhausen, Maderna e Boulez — não é vulgarmente tida como um retrocesso civilizacional.

Não obstante, parece certo que a história da música é também feita de mudanças repentinas — poderíamos até, nalguns casos, classificá-las como artisticamente violentas — que resultam da libertação de algo que é sentido pelos criadores como uma opressão. Em muitos casos, podemos inclusive observar o curioso movimento que transforma a revolução de ontem na opressão de amanhã, alimentando, assim, a noção comum de que cada geração de artistas tem a necessidade de operar a sua própria revolução. Mas, num momento histórico em que parece não haver quaisquer limites à criação artística, porque precisarão ainda os músicos de revoluções?

Convirá começar por esclarecer que os limites não constituem, por si só, obstáculos à criação. São, pelo contrário, fundamentais para que o exercício da liberdade criativa possa ser significativo. Não haverá, aliás, estratégia mais disseminada para desbloquear o infame síndrome da página em branco do que a adesão disciplinada a limites mais ou menos arbitrários: é precisamente o limite que, ao cercear as opções disponíveis, acaba por revelar caminhos possíveis. É assim comum que as revoluções musicais se iniciem justamente com a inibição do recurso a uma ou mais convenções artísticas do momento. Como bem lembrou Jean-Paul Sartre, os limites são frequentemente libertadores, e uma hipotética liberdade artística total seria simplesmente ininteligível. Onde está, então, a opressão que empurra os artistas para a revolução?

Penso que a encontramos no limite que é estabelecido pela insidiosa expectativa da adesão a determinadas soluções artísticas. O espírito do nosso tempo dita-nos a relevância de determinados tipos de soluções e as obras que admiramos oferecem-nos tentadoras chaves prêt-à-porter para os problemas com os quais nos deparamos em cada momento, até porque as opções artísticas são sempre muito mais óbvias quando as observamos a jusante da criação. O contexto em que criamos assedia-nos com convenções, com modas, com tabus e, caso tenhamos obra feita, com expectativas de continuidade numa determinada facticidade reconhecível que se vai enquistando aos olhos dos outros como o nosso estilo. Não é por acaso que vários criadores se referem — como notavelmente o fez James Baldwin — ao carácter eterno da luta pela integridade artística, particularmente difícil depois de uma obra bem sucedida ou perante o poder avassalador da obra de um mestre que admiramos.

Reside aí, julgo, a dolorosa ambivalência do poder revelador da arte. Um acto de criação que desvela abrupta e inequivocamente o que permanecia até então oculto pelas convenções do seu momento — um acto, por isso mesmo, revolucionário — torna-se, quase de imediato, num irresistível canto de sereia para o próprio criador e, não raras vezes, para um grande número de outros. O problema é que um mesmo gesto que agora mesmo impressionava de tão excitante e revolucionário se torna rapidamente, pela mimesis e disseminação, numa entediante e conformista colagem ao novo status quo. O que antes era apenas revelação, opera agora, e nos mesmos termos, uma simétrica ocultação. É por isso que, e nas palavras com que Wislawa Szymborska aceitou o Nobel da Literatura de 1996:

Os poetas, se autênticos, […] devem repetir “não sei”. Todo o poema assinala um esforço para responder a essa afirmação, mas assim que a frase final cai no papel, o poeta começa a hesitar, a dar-se conta de que essa resposta particular era puro artifício, absolutamente inadequada. Portanto, os poetas continuam a tentar e, mais cedo ou mais tarde, os resultados da sua insatisfação consigo mesmos são reunidos, presos num clipe gigante pelos historiadores da literatura e passam a ser chamados a sua “obra”.

Desvelar hoje o que foi ocultado pela revelação de ontem: é esta, em suma, a revolução que cada criador tem entre mãos no momento de iniciar uma nova obra. Não se trata, em todo o caso, de uma simples negação da revolução de ontem: seria desonesto assobiar para o lado e fingir que não vimos, e a má-fé permanecerá sempre como o mais estéril dos terrenos. O difícil equilíbrio é então o de encontrar o que permanece oculto no espírito do nosso tempo sem negar o que nos foi revelado pelos espíritos de tempos passados. Bach, Beethoven, Brahms e Berio — ou Händel, Haydn, Hendrix e Haas — revelaram-nos muito acerca daquilo a que chamamos música, e o poder das suas revelações é o cimento de uma alargada comunidade de músicos e melómanos. Não é possível ser-lhes indiferente ou cobrir o que a custo desocultaram. Não é possível superá-los e é extraordinariamente difícil resistir ao seu poder sedutor. Não obstante, e no solitário momento da verdade em frente à folha em branco, todos os criadores sabem bem que, nas palavras imortalizadas por Antonio Machado e Luigi Nono, no hay caminos, hay que caminar. Soñando.

Rui Penha, Março de 2023